domingo, 23 de dezembro de 2007

Saio correndo, aos saltos, para a cozinha.
Preciso de água.
Pego um copo que logo escorrega da minha mão trêmula. Quebra-se. Converte-se numa areia espaçada e opaca.
Tento outro. Minha avidez consegue prendê-lo. Bebo.
Um pouco de água retém-se entre a sombra dos pêlos do lado esquerdo da minha boca.
O resto escorre velozmente até o pescoço.
A tensão acalora-me.
Porque de novo aquela voz, aqueles trejeitos? Com certeza, aparecera de propósito. A menina, que só vi quando era recém nascida, parece-se muito com ele. A mulher; macilenta, com seus cigarros e risos escandalosos, é cada vez mais afetada. Anda na ponta dos pés, como se quisesse desculpar-se por uma falta grave.
E porque esse frenesi e essa mão pegajosa? Nada mais se move, minha cara. E esse sentimento, se existe, já é gasto demais para chegar a ser verdade.
De olhos fechados, a cada gole, desejo-lhes desgraças de toda sorte.
Então, a penitência: verto o líquido na garganta até a ânsia de vômito; só ela me purifica.
Quero, ao mesmo tempo, o milagre da água que, sendo tão matéria, torna tudo fluido e vaporoso. Sendo completamente neutra, traz em si todas as nuances.
Desejo o poder da única que é capaz de tudo; até de dissolver-me o sangue encolerizado.
Sinto, então, que tudo se pacifica e aplaca em forma de um suspiro pleno e cansado.
Eis a sala, escura de fumaça; eis os risos: a mulher ensaia, canhestra, uns passos de dança. A menina ri, ele aplaude.
Debato-me no camarote deste amargo espetáculo.

Um comentário:

Daniel Feitosa disse...

intenso e belo.

e quando não somos os próprios atores, há camarotes por toda parte.