domingo, 31 de outubro de 2010

Depois de Augusto. Sim, Augusto parcialmente soterrado na minha memória, emergindo de vez em quando ante alguns contratempos. O coro ensurdecedor de anjos foi degolado e arrastado pela chuva pálida de um dia frio.
Não houve anunciação com Mauro, postou-se ao meu lado com seu hábito cansado e cada vez mais inocente de abordar moças jovens e um pouco perturbadas. Mal sabia ele. Os primeiros beijos foram desajeitados, com gosto de sua cerveja e dos meus cigarros. Depois das banalidades da descoberta, conversávamos dentro de um mesmo círculo: nossa carreira, que era a mesma, ou seria, porque eu não tinha uma ainda e esperava que alguma providência sobrenatural me livrasse do fardo, livros, lugares em comum. Seus amigos que lecionavam para mim e que nunca imaginei tendo uma vida para conhecerem Mauro.
Os assuntos eram parcos e cada vez mais tediosos, e a fuga foi a carne. Para ele, deslumbrado com meu corpo, o susto de cada movimento tinha-se congelado em suas pupilas para lembranças que gerariam referências por semanas. “Foi lindo quando você fez isto”, ele me dizia muitas vezes como se eu me recordasse de algo e pudesse repeti-lo com perfeição. Dava-lhe minha espontaneidade como novas cartilhas para que ele decorasse.
Meu encanto por ele vinha de outras partes. Quando ele falava e enchia a sala do apartamento quase sem mobília de livros, pássaros, discos e divagações sobre o meu futuro, brilhante, ele dizia, porque eu tinha meus belos olhos e esperteza sem limites. Novamente, ele mal sabia que eu tinha muito medo e minhas perturbações iam muito além da simples insegurança. Tinham um quê de certeza.
Inclusive quanto a ele. Medo que mais não me caiba. Isto todos temem, podem sim não confessar. Mas quando se é jovem, eu tão jovem, Mauro já calvo, com suas dores nas costas, flacidez visível, o encontro de um muito cedo e de um já quase tarde demais; Mauro não era mais jovem, me deixaria para constituir família em breve. É como as coisas são. Então viria outro, e eu não teria compensações. Admiraria sempre almas que me deixariam para buscar segurança que eu não podia dar por ter visto pouco, por não saber quase nada. Para os que tinham minha idade, era eu velha demais, de uma sabedoria irritante e dolorosa.
O novo não me pertencia e isso me incomodava. Ora, se tinha que conviver com homens mais velhos, seu sucesso, sua contemplação tediosa (em alguns momentos me fazia desejar ser eles, ser como eles, possuir suas almas), que estivesse descartada a expiração! Hoje sei que envelhecer fornece ao sujeito uma consciência de efemeridade atordoante, ao mesmo tempo passando a ilusão aos observadores de ser algo perene e pleno. Perene ante a morte. Não, me faltava ainda muita esperteza.
Porém, na falta de esperteza, a intuição acertou. Não direi o clichê do “quando menos eu esperava”. Não houve surpresa, não há surpresas em minha vida. Foi uma espera branda e feliz, e o acontecimento final sequer chegou a ser um golpe. As coisas se alinham como na minha previsão e eu queria acreditar em reveses, mas nada me deixa. Nem mesmo o amor me prega sustos. Então começo a pensar de que me valerá, enfim, a juventude.

Um comentário:

Marina Moura disse...

"Sim, Augusto parcialmente soterrado na minha memória, emergindo de vez em quando ante alguns contratempos"

Tu sempre descortina minhas sensações. Obrigada por isso, querida.