quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

As nuvens lá fora acossando: vai chover e mal saí do banho.
Será que fico arrumada em meia hora? Estou atrasada, coração quente e pulsando.
O desencontro é impossível, mesmo assim ainda temo.
O espelho embaçado lembra as tantas nuvens condensadas. Há estranhamento por esta presença. São duas horas, o sol deveria estar a pino mesmo nesta época de lodo e chuva.
Me posto à frente dele. Não; me imponho. E forço-me a ficar. Meu rosto assim como tudo que me faz é fugidio. Como tudo em mim é volátil, não quer ser capturado, refletido e analisado pelos olhos frios da prata. Não quer ser congelado por tamanha indiferença.
Começo a escovar meus cabelos. Se estivessem desembaraçados, seria mais rápido. As cerdas agridem os fios delgados. Ruidoso atrito de lã sendo penteada. Paro, de repente: encontro resistência, um nó de umas vinte extremidades. Ali, enorme, proibindo o uso da tesoura. Vou tentando sem força, porém com destreza desato algumas extremidades. Terminar o que restou seria muito custoso. Parto violentamente o que sobra: um novelo intricado e seco.
Escolho pacientemente minha roupa. Algo acolhedor, mas não escaldante. Detalhes e exigências fúteis me ocupam. Pulseira, colar e maquiagem prolongam o tempo perdido.
Saio e desço as escadas, sem guarda-chuva; ela nunca me apanha. Caminho alguns metros até o destino, e antes dele, gotas grossas caem sobre mim e um vento forte e frio me abate. Corro e chego.
Entro, bato a porta e sorrio, pingando. Gracejo por estar descomposta. Ele desdiz:
-Você sempre pareceu uma boneca.

sábado, 26 de janeiro de 2008

Não sinto o que penso saber;
só lamento.

O relógio
a espreita me cobra
suas horas.

Se pudesse retomar o empréstimo?
Não se julgam intentos...
Mas esquadrinham-se
com perícia
os anos inertes.

E então se faz verdade
que nada se extrai do memorável
senão a culpa.
E que não há significado no
futuro além do delírio.

Minha sobriedade
de praxe
Coalha meu sangue
e ata meus movimentos.

Elaboro uma fuga:
Não percebo
a mesma rota viciada
seguindo em parafuso.

Estranhos acidentes de percurso
na paisagem
enojada de tão vista.

Tudo, enfim,
se encarrega
de descaminhar
minha linha
reta.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Não faço concessões ao estilo fácil e equivocado dessas composições desengonçadas que primam pelo mau jeito de arrumar as palavras, com apelos a sentimentos bárbaros e sem precedentes tentando aflorar num deserto de comparações pobres e recursos bizarros de linguagem. Não há tranca mais condenável que a clausura dos enfeites. Bonito mesmo é o trabalho sobre o simples para transformá-lo em enigmático. A palavra que de tão rasa parece não conter nada-mas encerra todo o mundo.
Escrevo sobre o que eu sinto sem importar-me se é cabível. Num tom assim desconexo, mas sempre firme. Minha palavra é altiva, não tem escusa. É busca minha, e muito me admira quando alguém compreende.
Desejo apenas dizer. Afinal, esta é a mera função da palavra. Dizer, soprando ou gritando o que eu pressinto pelas letras. As cargas de dor, alegria ou graça? Não sei de onde vêm porque meu texto é isento de sensações minhas. Talvez a mágica das musas me auxilie.
Engana-se quem pensa que escrita tem algum rito, feitiço. Ela tem o saber de si. O resto é mito.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Não houve anunciação: visões, gritos desesperados, pétalas de rosas, chuva e palácios não existiram.
Em nada aquilo fora como um sonho. Mais um ultraje que qualquer dessas coisas bonitas que invariável e equivocadamente chama-se amor.
Silêncio. Silêncio e medo. Mas não aquele medo próprio do amor de suores frios e tremores pacatos. O pavor gélido nas entranhas, este sim, insistia em ser presente.
A dúvida perscrutava e pairava sobre eles. Os atormentava.
Ele tinha pressa. Uma pressa compulsiva que a incomodava justamente por não ser ânsia. Mas por ser mentira. Tudo nele era lisonja, entrega e superfície. Logo, vinha a desconfiança.
Ela não tinha certeza de nada. Isso o punha louco. Ademais, a frieza dela. Sempre daquele jeito abnegado e impassível.
Ali, não se sabia de leveza. Tampouco intensidade.
Havia, sim, doçura e beleza. Contudo, com uma densidade insondável.
O segredo por si só, já muito pesava e doía. Então, havia muito riso quando se viam. Ambos tinham muito a esconder, um do outro e das outras pessoas. Ninguém os via e trabalhavam para isso. Amigos do sigilo não porque ele trouxesse mais calma, mas apenas por causa do alívio de explicações e normas. E a tudo eles contrariavam, com isto. Em verdade, era mesmo tão vergonhoso este ato que se fazia necessário vivenciar uma transgressão para torná-lo justificável.
Mesmo que de uma das partes não houvesse fé no que se fazia. “Em nome do quê realmente aquilo existia?”-um dos dois sempre indagava. Devaneio fátuo, este. Mas não sabiam ainda que parecesse tolo, era preciso.
Por trás do vulto escuro que eram mutuamente um para o outro, havia o lume.
E somente eles não viam, cegos de tanto brilho.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Chego à terra estranha.
Um susto: todos têm o mesmo cheiro, o mesmo traje.
Os mesmos vermelhos, brancos e lilases sempre agredindo minha vista.
Sempre as mesmas frases, os mesmos gostos- até os gestos! Nada de novo, coisas remoídas. Tudo muito forçado.
Não se pode acusá-los de iniqüidade...
Quem é um pouco lúcido por estar fora disto tudo, logo fica saturado.
Em dias de festa, bebida. E música. Música que parece querer chegar aos céus, mas tomba nos muros e cai pelas valas.
Entre fogos e danças, realmente são únicos.
Eles têm um rei, este povo: um senhor de cabelos brancos e sedosos que faz cerimoniais para os ventos de junho.
Parece que os guia sobre as razões do céu e da terra que ele cria.
Tem lá seus escolhidos, esse cacique: são os mais estáticos, os que em nada se diferenciam.
Um ressentimento chamado por eles orgulho domina a todos.
Para eles, ofuscante é o mesmo que invisível.
Eles não conhecem o divisor entre excentricidade e loucura. Ambas vão para um aconchegante quarto de despejo. Mas de fato, há poucos rejeitos reais pela cidade dignos do exílio. Por medo ou covardia, tudo se congela, tudo pára. E permanece.
E não existe deslumbre ou admiração, por aqui: só é aceita a afinidade.
Enfim, a tribo fechada em suas muralhas de pedra jaz ignorando o diverso que existe em todas as luzes e palmas do espetáculo que é o mundo.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

O contrário do amor era isto que estava vivendo. Ódio, desconfiança, pudores, indiferença-tudo isso é conivente com ele. Coexistem, às turras. Flutuam de mãos dadas por sua ambigüidade. Só não pertence ao sentimento o que ele estranha e não toca. Algo mais tênue e mais perigoso até que ele próprio.
Sinto agora o que o amor desconhece.
A busca desesperada por si mesmo é a única coisa que o amor real não alcança.
E é exatamente esse meu encalço. Errado, falso. Todavia, só sei dele.
A verdade do amor e não precisa conhecer a si mesma. Está ali, sempre, iluminada, evidente. Nunca se perde-obviamente, não precisa ser indagada. Nasce e existe, apenas. Até que um dia, sendo notada ou não, morre. Sempre em sua película trancada de orgulho.
O que eu tenho? Do contrário do que queria sentir, do avesso do amor, tudo. Imagens mirabolantes percorrem meu corpo em ondas gélidas. Possuo todo o querer que jamais desejo a alguém. E tanta avidez afasta-me do que realmente preciso. Amor é segredo. Fazê-lo vir à tona com palavras, gritos e gestos é sufocá-lo com uma mágica que ele não precisa. Ir à caça do sentimento é assassiná-lo.
O amor é feito de atos. A minha procura, por devaneios.
E sinto muito: para este equívoco, talvez o mais violento de todos, não há conserto.
Esta verdade é a mais pura violação de mim mesma.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Somos o mesmo corpo.
Mas eu não sei se você tem uma alma ou se é todo o meu susto que lhe faz.
Eu sou a sua imagem. De tudo o que você pensa, eu sou o contrário.
É você, com toda beleza, faltas e falas; meu espelho: não o avesso.
Não pense que me instituindo amarras, me calo.
Você não terá minhas palavras, mas terá meu rosto. E este poderá ser pânico, lágrima ou desgosto.
Nunca ouse dizer que sou indesejada. Se o fizer, eu destruo-quem diria!-toda a luz que lhe forma. Vê como posso ser vingativa, meu amor? Eu não saio da clausura, eu não me importo. Você sim. Sempre se preocupando demais com aquilo que emana. Por esse motivo, é mais divertido ainda quando eu lhe golpeio. Advirto: seu ímpeto de vingança não me amedronta porque o que reside em mim é apenas a provocação da curiosidade. É isso o que tanto a incomoda. Ver-lhe irada atiçaria meus ânimos, me faria ser cada vez mais determinada na exploração das suas profundezas.
Eu estou provocando? Querendo briga? Que nada. Eu gosto da verdade. Mas não daquela arranjada e bonita: eu gosto da verdade que é lapidada por meio do conflito. Eu sou a provocação do conflito consigo mesma. Eu sou o pavio.
Não sou conseqüência ou ameaça porque simplesmente eu existo por conta própria, sem precisar ser definida. Você existe meramente pelo que eu reflito. Você é em linha reta. Mas eu sou o desvio. Nesse caso, a parte não se liberta do todo porque não há um gênio aprisionado. Há um corpo-o seu corpo, o material, não o da imagem-imerso no vácuo das vontades.
Viu, só? Sem esforço, sou todo o seu antagonismo.
Exasperada assim, você nem percebe que é só o meu começo.

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

- E eu que tenho que parar pra pensar no que os outros estão sentindo? Eu?
Você não acha que eu estou cansada demais pra imaginar o que ele deve estar pensando, o que ela deve estar pensando, o que os dois juntos devem estar pensando? Eu jamais serei motivo de aflição para ele, algo que ele deseje ocultar dela. É óbvio demais: eu sou uma piada para os dois, eu tenho quase certeza. Uma certeza remota e inquietante, aquela coceirinha da intuição no juízo da gente. A toda hora eu sou insultada em meu pensamento pelas gargalhadas deles, e eu respiro fundo e sigo. A cada passo, a cada frase minha, eu ouço os ecos das risadas. E não se trata do ultraje ao que eu penso e ao que eu sinto; isso é suportável. Mas a humilhação, ah, essa sim. Cara, estavam umas cinco pessoas com a gente e ele começou a despejar tudo aquilo, a ser exagerado e verborrágico, a dar todos os detalhes a vida deles pra mim. Ele se dirigia exclusivamente a mim. Eu estava ilhada e ele sabia disso. Ninguém me conhecia. Ninguém lá sabia dessa tensão ridícula. Não era algo que estava suspenso no ar. Sendo assim, se eu me descontrolasse e saísse correndo ou agredisse ou gritasse ou falasse a verdade não haveria pessoas para entender, reconsiderar ou sequer apoiar. E o filho da puta tinha calculado tudo. Meu Deus, ela sabe que ele faz esse tipo de coisa porque quer desviar-se de mim e não consegue. E ela tolera.
- Mas é claro que ela tolera! Ela sabe que ele a ama. Você é um peão, uma ninharia. E também a vítima fodida.
- Fodida, não.
- Não?
- Não.
As duas riem.